O que é a estratégia Saúde da Família

Em dezembro de 2008, antes de eu inaugurar este blog, o psicólogo brasiliense Vladimir Melo me encomendou um texto introdutório à estratégia Saúde da Família. O artigo tem sido um campeão de leituras, de forma que, quando ele decidiu desativar o blog, me devolveu o artigo para republicação aqui no Doutor Leonardo.

Estratégia Saúde da Família (ESF) é o nome que se dá atualmente a uma das mais bem-sucedidas iniciativas brasileiras em saúde das últimas décadas. Foi concebida em 1993, com o nome de Programa de Saúde da Família (PSF), a partir de iniciativas brasileiras e algumas iniciativas internacionais mais adiantadas (como o “general practitioner” britânico e o médico de família cubano). Em seus primeiros anos, o então PSF foi implantado nos municípios do “Mapa da Fome”, sob o comando quase direto de Brasília, mas depois passou a ficar sob o comando dos municípios, ocupando um papel cada vez mais importante no sistema de saúde, e passou a ser aberto a todos os municípios do Brasil. Em 1998, quando os repasses federais para a atenção básica passaram a ser por habitante, e não por número de procedimentos, a estratégia Saúde da Família começou a se expandir vertiginosamente. Em outubro de 2008, de acordo com o Ministério da Saúde, a ESF estava presente em 94% dos municípios brasileiros e atendia a 93,1 milhões de brasileiros. O resultado tem sido a melhoria de vários indicadores de saúde, e o aumento da satisfação dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Esses fatos foram destacados pela Organização Mundial da Saúde em seu Relatório Mundial da Saúde de 2008, que citou o Brasil como um exemplo a ser seguido.

Um dos grandes diferenciais da estratégia Saúde da Família é a definição clara do território e, mais importante, das pessoas sob responsabilidade de cada equipe. Isso fortalece o vínculo da equipe com a população, o que é fundamental numa época em as condições crônicas se tornaram muito mais importantes para o sistema de saúde do que as urgências e emergências. O agente comunitário de saúde (ACS) é fundamental na formação desse vínculo, já que ele faz parte da população atendida pela equipe em que ele trabalha. Foi feita até mesmo uma Emenda Constitucional para que a residência na área seja um pré-requisito para o emprego. Cada equipe tem entre 4 e 8 ACS, que dividem entre si a área de abrangência da equipe. Eles fazem então o cadastramento de cada família e cada pessoa em suas microáreas, incluindo as pessoas com plano de saúde. A partir daí, fazem vistas mensais ou mais frequentes, trocando informações com as pessoas sobre como elas podem cuidar de sua saúde, e alertando o resto da equipe sobre situações que requeiram a atenção dos outros profissionais. A chamada “equipe mínima” é composta ainda por um ou mais auxiliares de enfermagem ou técnicos de enfermagem, por um enfermeiro e por um médico. As atividades dos auxiliares ou técnicos de enfermagem numa equipe de Saúde da Família são bastante semelhantes às desses profissionais em outras equipes, apesar de surgirem mais oportunidades para atividades preventivas ou curativas fora da unidade (“posto”) de saúde.

As condições crônicas estão presentes em grande parte da população, e são responsáveis pela maior parte da carga de doença do Brasil. Elas incluem tanto as doenças crônicas, ou seja, de curso arrastado, como hipertensão arterial sistêmica (“pressão alta”), osteoartrose (o tipo mais comum de “reumatismo”) ou asma, quanto outras situações, como a gravidez ou o risco de uma pessoa adquirir uma doença no futuro. Enfermeiros e médicos de Saúde da Família também cuidam de situações agudas (de instalação e resolução rápida), mas seu grande diferencial está no manejo de condições crônicas. Através de protocolos clínicos, os diagnósticos (ou mais precisamente, os diagnósticos médicos) e grande parte das decisões terapêuticas ficam a cargo dos médicos, mas os enfermeiros podem participar de atividades de rotina previstas nos protocolos. A atividades mais comuns são relacionadas à saúde materno-infantil, como a consulta de pré-natal e a coleta do exame preventivo de colo de útero, mas de acordo com os protocolos adotados pela secretaria municipal de saúde os enfermeiros podem ainda solicitar certos exames de rotina ou manter a prescrição de determinados medicamentos. Além de prestar assistência direta às pessoas, o enfermeiro de uma equipe de Saúde da Família também supervisiona o trabalho dos agentes comunitários e dos auxiliares ou técnicos de enfermagem da equipe.

O médico de uma equipe de Saúde da Família trabalha 40 horas por semana, assim como os outros membros da equipe, mas diferente da maioria dos médicos, que trabalham apenas 20 horas semanais em cada emprego. O pagamento costuma ser fixo, mas em algumas cidades existe um adicional (oferecido às outras profissões também) que está condicionado a indicadores de saúde definidos pela secretaria municipal de saúde. Quando o paciente tem uma queixa, o médico de família e comunidade é o primeiro a avaliá-la, de forma que ele precisa saber reconhecer doenças em suas fases iniciais, quando ainda não se manisfestaram completamente. O médico de família e comunidade é especializado nos problemas de saúde mais comuns e importantes, principalmente naqueles que fazem parte das condições crônicas. As doenças que o médico de família e comunidade domina não estão restritas a uma parte do corpo, de forma que a medicina de família e comunidade tem sobreposição com uma série de outras especialidades, como a clínica médica, a ginecologia & obstetrícia, a pediatria, a cirurgia, a ortopedia e a psiquiatria. O que define a
especialidade é o contexto da assistência, não a parte do corpo. Além disso, a responsabilidade do médico de família e comunidade é para com a pessoa, e não apenas com a doença. Dessa forma, a pessoa continua tendo seu médico de família e comunidade mesmo que ele precise encaminhá-la a outro médico por algum problema específico. Atualmente poucos médicos e ainda mais raros enfermeiros possuem especialização em Saúde da Família, mas o Ministério da Saúde está desenvolvendo um projeto com
universidades brasileiras para especializar os profissionais que já trabalham na estratégia Saúde da Família.

Quinze anos depois de sua concepção, a estratégia Saúde da Família é oficialmente reconhecida no Brasil como a estratégia prioritária para a reorganização da Atenção Básica. Sua qualificação, expansão e consolidação são uma prioridade nos acordos estabelecidos entre o Ministério da Saúde e os secretários estaduais e municipais de saúde. A Organização Panamericana de Saúde e a Organização Mundial de Saúde defendem que os sistemas de saúde (como o SUS) sejam reestruturados para colocar a Atenção Básica em seu centro, provendo atenção continuada e coordenando o acesso das pessoas aos demais serviços de saúde. No Brasil, essa tendência internacional se fez sentir em pelo menos alguns dos planos estaduais de saúde para 2008-2011 (p. ex. em São Paulo e no Espírito Santo), que se propuseram a reorganizar o acesso aos hospitais e centros de especialidades, e incluíram a ESF no orçamento estadual (antes o financiamento era apenas federal e municipal). Alguns municípios, por sua vez, têm experimentado ampliar a equipe mínima, agregando outros profissionais como fisioterapeutas, psicólogos ou nutricionistas. Estão sendo desenvolvidas ainda iniciativas de educação permanente para as equipes de Saúde da Família, como por exemplo as equipes matriciais (mais conhecidas como NASF). Com tudo isso, e depois de 8 eleições federais, estaduais e municipais, podemos dizer com segurança que a estratégia Saúde da Família é verdadeiramente uma política de Estado, e não uma política de governo. Ou seja: a Saúde da Família veio para ficar.

Em 2011, a nova Política Nacional de Atenção Básica manteve a estratégia Saúde da Família (ESF) como modelo preferencial para a organização da atenção básica (atenção primária à saúde) no Brasil, e a 14ª Conferência Nacional de Saúde recomendou a expansão da ESF até cobrir toda a população brasileira. Desde 2009 não ouço algum burocrata dizer que a Saúde da Família é um programa que pode acabar a qualquer hora.

19 pensou em “O que é a estratégia Saúde da Família

  1. Walter Alvim de Albuquerque

    Muito esse texto, Leonardo. Também sou médico do PSF e acredito nessa estratégia como forma de reorganizar a Atenção Primária no Brasil. No texto você informa que alguns municípios impplantaram uma forma de pagamento misto, com uma parte fixa e outra na dependência de a equipe atingir ou não as metas estabelecidas. Tenho duas perguntas prá você: Você sabe citar alguns municípios em que esse sistema está sendo usado? Essa forma de pagamento é legal? Existe alguma legislação a respeito, que você conheça?

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    1. Leonardo Fontenelle Autor do post

      Oi, Walter.

      Na época em que escrevi o artigo, a cidade mineira de Janaúba era o exemplo mais divulgado. Hoje o município do Rio de Janeiro repassa um valor adicional às organizações sociais em função do desempenho em certos indicadores, e se não me engano as organizações sociais costumam repassar para as equipes. Depois do PMAQ-AB, muitos municípios começaram a repassar o valor às equipes de Saúde da Família.

      A legislação federal prevê que os servidores públicos sejam avaliados e que possam receber por seu desempenho. No caso da atenção primária à saúde, o mais importante é a legislação municipal. A lei tem que ser de iniciativa da prefeitura municipal, e geralmente os detalhes são objeto de portaria.

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  2. lulllcineide

    Claro e informativo, acredito nesta Estrategia e sei que investindo nela teremos uma saude de qualidade ao alcance de todos os usuarios.

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