Mais gordura, menos carboidrato, mais saúde

Há muito tempo se sabe que uma dieta rica em gorduras saturadas está associada aos níveis de colesterol LDL (“ruim”), que está associado a placas de colesterol, que estão associadas a doenças cardiovasculares, como o infarto agudo do miocárdio (enfarte cardíaco) e o acidente vascular cerebral (AVC, derrame). Por isso, há cerca de quarenta anos se recomenda uma dieta pobre em gordura (especialmente saturada) e rica em carboidratos (como arroz e pão).

Desde então, nosso entendimento do assunto avançou consideravelmente. Por exemplo, já sabemos que consumir ovo não aumenta o risco de doença cardiovascular, apesar de a gema do ovo ser rica em colesterol. Não apenas o ovo é rico em substâncias benéficas, mas (o mais importante) várias pesquisas verificaram que o risco cardiovascular não aumenta com o consumo de ovo.

Agora é a vez reexaminarmos o papel das gorduras e dos carboidratos no risco cardiovascular. Lembram-se do estudo PURE, com seus surpreendentes resultados sobre a relação entre a ingestão de sódio e a mortalidade? Em um artigo publicado em agosto pela revista científica The Lancet), os pesquisadores do PURE avaliaram a relação entre a ingestão de gorduras e carboidratos e o risco de doença cardiovascular (inclusive morte cardiovascular) e de morte por quaisquer causas. Durante uma média de 7,4 anos, o estudo acompanhou mais de 135 mil pessoas, tanto na área urbana quanto na rural, em 18 países distribuídos entre todos os continentes e estratos de desenvolvimento econômico, inclusive o Brasil.

Descontando-se o efeito de outras tantas variáveis, a expectativa de vida foi maior na medida em que as pessoas ingeriam mais gorduras, e menor na medida em que elas ingeriam mais carboidratos. Isso vale para cada um dos três tipos de gordura (saturada, monoinsaturada e poli-insaturada). Por outro lado, o risco de eventos cardiovasculares principais (infarto, derrame, morte cardiovascular) não aumentou nem diminuiu com a ingestão de gorduras ou carboidratos. Só o risco de AVC diminuiu com a ingestão de gorduras saturadas, e mesmo assim por um triz.

Risco de morte por todas as causas e por causas vasculares, conforma porcentagem estimada de energia ingerida na forma de gorduras totais, gorduras saturadas, gorduras monoinsaturadas, gorduras poli-insaturadas e carboidratos

Associação entre mortalidade total e cardiovascular e a percentagem estimada da energia ingerida por tipo de nutriente

Na verdade, essa relação não é tão linear assim. A ingestão de carboidratos parece aumentar a mortalidade (ou seja, diminuir a expectativa de vida) tanto acima de 60% das calorias quanto abaixo de 40%. Em outros termos, esse estudo sugere que dietas com pouco carboidrato façam tão mal quanto aquelas ricas em carboidratos. A melhor opção parece ser ingerir 50% a 55% das calorias na forma de carboidratos, um pouco menos do que a média brasileira de 56%.

Com relação às gorduras, a principal mensagem é que elas devem constituir pelo menos 15% da energia. Além disso, em uma faixa extrema (que só ~ 5% da população mundial alcança), o maior consumo de gorduras poli-insaturadas parecem ser benéfico para a saúde. No caso da população brasileira, que consome em média 30% da energia na forma de gorduras, os gráficos sugerem que aumentar essa proporção para 31% a 35% (compensando a redução no consumo de carboidratos) diminuiria o risco cardiovascular e aumentaria a expectativa de vida.

Os resultados do estudo são razoavelmente surpreendentes, e contrariam boa parte das diretrizes nutricionais do mundo. Um motivo para esses resultados surpreendentes é que, ao contrário dos estudos anteriores, o PURE avalidou pessoas do mundo todo. Com isso, o estudo pôde avaliar uma variedade maior de hábitos alimentares: nos países mais pobres, a dieta rica em carboidratos é bem mais comum do que nos países ricos, onde foram feitos os outros estudos.

Outro motivo para confiar nos resultados deste artigo é um outro, publicado simultaneamente pelo mesmo grupo na revista científica The Lancet Diabetes & Endocrinology. Nesse artigo, os autores mostraram que o consumo de gorduras estava associado não apenas ao colesterol LDL e total, mas também ao colesterol HDL (“bom”) e a outros exames associados a um menor risco cardiovascular. Isso valia tanto para as gorduras saturadas (manteiga) quanto para as gorduras monoinsaturadas (azeite) e as poli-insaturadas (óleo de soja). Inversamente, o consumo de carboidratos estava associado a menores níveis de colesterol LDL, mas também a menores níveis de colesterol HDL e outros exames associados a um menor risco cardiovascular. Ou seja, gorduras e carboidratos têm efeitos positivos e negativos sobre o metabolismo do colesterol, e o resultado é uma complexa somatória desses efeitos.

É interessante notar que, no final das contas, o consumo de carboidratos e de gorduras tem um efeito muito mais claro sobre a mortalidade total do que sobre a mortalidade cardiovascular ou a instalação de doenças cardiovasculares. Como o estudo PURE é focado em doença cardiovascular, ele não avaliou quais são essas outras causas de morte evitadas pelas gorduras e causadas pelos carboidratos.

Os autores do artigo sugerem que as recomendações alimentares sejam revistas, mas no caso do Brasil isso não será necessário. Enquanto a versão anterior falava em proporções de gordura (15% a 30%) e carboidrato (55% a 75%), a versão atual do Guia Alimentar para a População Brasileira enfatiza a ingestão de alimentos naturais ou pouco processados, em vez de alimentos processados ou ultraprocessados. Cada vez mais os estudos têm corroborado essa abordagem; por exemplo, carne ultraprocessada causa câncer.

Em breve comentarei outro artigo do estudo PURE, desta vez sobre os efeitos do consumo de frutas, hortaliças e legumes.

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