{"id":1523,"date":"2010-10-10T00:00:58","date_gmt":"2010-10-10T03:00:58","guid":{"rendered":"http:\/\/leonardof.med.br\/?p=1523"},"modified":"2016-05-20T13:58:45","modified_gmt":"2016-05-20T16:58:45","slug":"o-papel-do-agente-comunitario-de-saude-no-sus","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/leonardof.med.br\/2010\/10\/10\/o-papel-do-agente-comunitario-de-saude-no-sus\/","title":{"rendered":"O papel do agente comunit\u00e1rio de sa\u00fade no SUS"},"content":{"rendered":"

Sexta-feira n\u00e3o deu para publicar o artigo que eu pretendia, mas foi por um bom motivo. Eu estava terminando de preparar uma apresenta\u00e7\u00e3o para agentes comunit\u00e1rios de sa\u00fade de Vit\u00f3ria, a pedido dos estudantes de enfermagem da UFES<\/abbr>. Dia 4 de outubro foi o Dia Nacional do Agente Comunit\u00e1rio de Sa\u00fade<\/a>, e s\u00f3 agora percebi que nada publiquei a esse respeito. Resolvi ent\u00e3o matar dois coelhos numa cajadada s\u00f3, e trago a voc\u00eas uma vers\u00e3o adaptada de minha apresenta\u00e7\u00e3o. Ao longo dos pr\u00f3ximos dias escreverei o artigo sobre tratamento da osteoartrose<\/a> (prometido no artigo anterior<\/a>) e sobre a vacina\u00e7\u00e3o de rotina contra a catapora<\/a> (prometida num coment\u00e1rio<\/a>). Em breve pretendo trazer mais um artigo sobre os agentes comunit\u00e1rios de sa\u00fade<\/a> \u2014 aguardem!<\/p>\n

<\/p>\n

No interior escuro e esfuma\u00e7ado de um barrac\u00e3o, Maria, com 1 ano de idade, estava sentada quieta no ch\u00e3o de terra, entorpecida pela diarreia e desnutri\u00e7\u00e3o.<\/p>\n

Com outras sete crian\u00e7as para criar, a m\u00e3e de Maria, Ant\u00f4nia Souza Lima, explicou que n\u00e3o podia se dar ao luxo de uma caminhada de uma hora e meia, ou de pagar 40 centavos pela passagem de \u00f4nibus, para levar sua beb\u00ea moribunda ao posto m\u00e9dico mais pr\u00f3ximo.<\/p>\n

Piorando aos poucos, Maria parecia destinada a se tornar mais uma das 250 mil crian\u00e7as brasileiras que morrem antes de completar 5 anos de idade.<\/p>\n

Mas, em um novo esfor\u00e7o para reduzir a devastadora taxa de mortalidade infantil, uma agente comunit\u00e1ria de sa\u00fade come\u00e7ou recentemente a vir toda semana \u00e0 casa de Ant\u00f4nia, trazendo soro de reidrata\u00e7\u00e3o oral para Maria e informa\u00e7\u00f5es sobre higiene para sua m\u00e3e, que tem uma televis\u00e3o mas n\u00e3o um filtro de \u00e1gua.<\/p>\n

Com o novo programa de sa\u00fade p\u00fablica, envolvendo um ex\u00e9rcito de trabalhadores de sa\u00fade de baixo custo, o estado do Cear\u00e1 est\u00e1 mostrando para o Brasil que \u00e0s vezes, mesmo em tempos de austeridade econ\u00f4mica, a mortalidade infantil pode ser reduzida.<\/p>\n

Em quatro anos, o Cear\u00e1, um dos estados mais pobres do Nordeste brasileiro, reduziu sua mortalidade infantil em cerca de um ter\u00e7o. O n\u00famero de beb\u00eas que morria antes de seu primeiro anivers\u00e1rio era de 39 para cada 1000 nascidos vivos em 1990, quando a pesquisa foi realizada pela \u00faltima vez; em 1987, esse n\u00famero era de 57 por 1000.<\/p>\n

[…] Erismar Rodrigues de Lima, uma vizinha de Ant\u00f4nia, ouviu atentamente \u00e0s instru\u00e7\u00f5es sobre a filtragem de \u00e1gua. “Eu sou a primeira pessoa da minha fam\u00edlia a ter recebido cuidados pr\u00e9-natais”, disse a mulher de 22 anos, que espera um beb\u00ea para junho.\n<\/p><\/blockquote>\n

Esse relato foi publicado numa mat\u00e9ria do New York Times<\/cite><\/a> em 1993, quando o Cear\u00e1 ganhou o pr\u00eamio Maurice Pate, da Unicef, pela redu\u00e7\u00e3o da mortalidade infantil. O programa Viva Crian\u00e7a<\/q>, como era conhecido na \u00e9poca, foi criado pelo estado em 1987, quando o pa\u00eds come\u00e7ava a se recuperar do endividamento e da desigualdade social causados pelo milagre<\/q> econ\u00f4mico.<\/p>\n

Os agentes de sa\u00fade, como eram conhecidos na \u00e9poca, n\u00e3o foram uma cria\u00e7\u00e3o do Cear\u00e1. Em 1979 eles j\u00e1 existiam no Maranh\u00e3o, e ap\u00f3s um documento de 1985 da Unicef eles foram adotados em v\u00e1rias cidades brasileiras e em outros pa\u00edses do terceiro mundo<\/q> (pobres). Mas foi sem d\u00favida o sucesso do programa no Cear\u00e1 que impulsionou a cria\u00e7\u00e3o do PACS<\/abbr> e do PSF<\/abbr> no Brasil. Dr. Carlyle Lavor, secret\u00e1rio estadual de sa\u00fade que criou os agentes de sa\u00fade no Cear\u00e1, conta como tudo come\u00e7ou:<\/p>\n

\n[…] surgiu uma seca no Cear\u00e1 e houve a necessidade de empregar as pessoas que estavam sem emprego e passando fome. Ent\u00e3o, sugerimos a id\u00e9ia de empregar mulheres. Sempre nas emerg\u00eancias se empregam os homens, mas h\u00e1 muitas mulheres que n\u00e3o t\u00eam marido, que s\u00e3o as donas da casa. Ent\u00e3o sugerimos empregar 6 mil mulheres, que era o c\u00e1lculo que a gente tinha feito de agentes de sa\u00fade necess\u00e1rios para o estado. Foram selecionadas 6 mil mulheres dentre aquelas mais pobres do estado, que eram escolhidas por um comit\u00ea formado por trabalhadores, igreja, representantes do estado e munic\u00edpio. A gente definiu coisas muito simples e que eram muito importantes para a sa\u00fade, como conseguir vacinar todos os meninos, achar todas as gestantes e levar para o m\u00e9dico, ensinar a usar o soro oral. Assim, dentro de quatro meses, treinamos 6 mil mulheres sem nenhuma qualifica\u00e7\u00e3o profissional. E o mais importante \u00e9 que fossem pessoas que a comunidade reconhecia, mulheres que merecessem o respeito da comunidade. Assim foi o in\u00edcio do trabalho. Cessou o programa de emerg\u00eancia de atendimento \u00e0 seca que tinha 200 mil trabalhadores. Mas essas mulheres da sa\u00fade foram as \u00fanicas que continuaram a trabalhar, porque o sucesso foi grande demais.\n<\/p><\/blockquote>\n

No mesmo documento encontrei outro relato, de uma agente comunit\u00e1ria de sa\u00fade, que ilustra bem outra face da import\u00e2ncia da profiss\u00e3o:<\/p>\n

A gente mora no bairro, pr\u00f3ximo a pessoas com quem a gente trabalha, e morando no bairro, a gente conhece mais as pessoas, as pessoas conhecem mais a gente. Quando do come\u00e7o do treinamento eu falei: eu poderia at\u00e9 n\u00e3o conhecer todas as pessoas, mas com certeza todas me conheciam ali. Ent\u00e3o fica mais f\u00e1cil, porque a gente est\u00e1 mais na intimidade delas, fica mais pr\u00f3ximo, fica sabendo mais coisas. A gente \u00e9 uma ponte entre a unidade de sa\u00fade e os moradores. O que diferencia \u00e9 isto: \u00e9 que a gente est\u00e1 na rua, ent\u00e3o a gente est\u00e1 vendo o que est\u00e1 acontecendo, a gente sabe, e quando a gente n\u00e3o v\u00ea, eles nos procuram para falar.<\/p><\/blockquote>\n

As duas falas foram extra\u00eddas de num relat\u00f3rio do IPEA<\/abbr><\/a>, de 2000, sobre o v\u00ednculo empregat\u00edcio do agente comunit\u00e1rio de sa\u00fade.<\/p>\n

O trabalho do ACS n\u00e3o pode ser volunt\u00e1rio, porque exige dedica\u00e7\u00e3o demais, e porque as pessoas t\u00eam contas para pagar. A\u00ed entrou a quest\u00e3o do v\u00ednculo do ACS com o poder p\u00fablico; os servidores p\u00fablicos t\u00eam que ser admitidos por concurso p\u00fablico, e com raras exce\u00e7\u00f5es o Estado n\u00e3o pode escolher onde moram seus servidores. A quest\u00e3o foi resolvida com a Emenda Constitucional n\u00ba 51<\/a>, e a Lei Federal n\u00ba 11.350<\/a>, ambas de 2006, que definiram que o agente comunit\u00e1rio de sa\u00fade deveria ser admitido pela pr\u00f3pria secretaria municipal de sa\u00fade (ou pela Funasa<\/abbr>), pela CLT<\/abbr> (carteira assinada) ou pelo Regime Jur\u00eddico \u00danico (estatut\u00e1rio), e que ao ser selecionado o ACS s\u00f3 precisaria ter ensino fundamental e ser morador da \u00e1rea em que vai trabalhar. Anteriormente era necess\u00e1rio ser morador por 2 anos; no in\u00edcio, com a sele\u00e7\u00e3o pela pr\u00f3pria comunidade, era necess\u00e1rio j\u00e1 ser uma refer\u00eancia local, mas n\u00e3o era necess\u00e1rio ter ensino fundamental, bastava ser alfabetizado. (Leia tamb\u00e9m: Emenda constitucional garante piso salarial para agentes comunit\u00e1rios de sa\u00fade<\/a><\/q>.)<\/p>\n

Al\u00e9m da forma de contrata\u00e7\u00e3o, o pr\u00f3prio trabalho do agente comunit\u00e1rio de sa\u00fade se transformou ao longo dessas duas d\u00e9cadas. Cenas como as descritas no in\u00edcio s\u00e3o cada vez mais raras, gra\u00e7as a uma s\u00e9rie de pol\u00edticas sociais. Um relat\u00f3rio da Unicef<\/a> revela que a mortalidade infantil brasileira diminuiu de 46 por mil (em 1990) para 17 por mil (em 2009), e que o n\u00famero de crian\u00e7as brasileiras que morrem antes dos 5 anos de idade caiu para 61 mil por ano (em compara\u00e7\u00e3o com os 250 mil do relato inicial.). Al\u00e9m disso, a partir da segunda metade da d\u00e9cada de 90, o trabalho dos ACS passou a ser desenvolvido em todo o pa\u00eds, mesmo junto \u00e0s popula\u00e7\u00f5es com melhor n\u00edvel socioecon\u00f4mico. Integrando enfermeiro, m\u00e9dico e ocasionalmente outros profissionais \u00e0 equipe, o sucesso foi t\u00e3o grande que o PSF deixou de ser uma cesta b\u00e1sica<\/q> de sa\u00fade para os pobres, e tornou uma pol\u00edtica de sa\u00fade abrangente, integral, com a miss\u00e3o de reordenar o sistema p\u00fablico de sa\u00fade. Hoje em dia o Brasil tem cerca de 240 mil agentes comunit\u00e1rios de sa\u00fade, que atendem a mais de 60% da popula\u00e7\u00e3o. Quase todos os munic\u00edpios brasileiros t\u00eam agentes comunit\u00e1rios de sa\u00fade \u2014 96,2%, para ser mais exato.<\/p>\n

Existem v\u00e1rios fatores que influenciam a efetividade do trabalho de uma equipe de Sa\u00fade da Fam\u00edlia, como o entrosamento da equipe, e a personalidade e compet\u00eancia t\u00e9cnica de seus profissionais. Mas de uma forma geral \u00e9 poss\u00edvel afirmar, com toda certeza, que o agente comunit\u00e1rio de sa\u00fade continua sendo uma pe\u00e7a chave no Sistema \u00danico de Sa\u00fade. Em vez de basear a afirma\u00e7\u00e3o apenas na minha experi\u00eancia profissional (com v\u00e1rias dezenas de agentes comunit\u00e1rios de sa\u00fade), fa\u00e7o quest\u00e3o de trazer um artigo cient\u00edfico<\/a> que li recentemente para minha disserta\u00e7\u00e3o de mestrado.<\/p>\n

Frederico Guanais, pesquisador brasileiro do Minist\u00e9rio do Desenvolvimento Social e do Combate \u00e0 Fome, se uniu a James Macinko<\/a>, professor de sa\u00fade p\u00fablica na Universidade de Nova Iorque, para avaliar a efetividade do PACS e do PSF sobre as interna\u00e7\u00f5es preven\u00edveis. O per\u00edodo analisado foi de 1998 a 2002, ou seja, os 5 primeiros anos ap\u00f3s o governo federal ter criado uma verba para incentivar a expans\u00e3o dos programas. Mesmo descontando a influ\u00eancia de uma s\u00e9rie de fatores socioecon\u00f4micos e do sistema de sa\u00fade, maiores propor\u00e7\u00f5es de agentes comunit\u00e1rios de sa\u00fade na popula\u00e7\u00e3o se mostraram associadas a menores taxas de interna\u00e7\u00e3o (entre as mulheres) por condi\u00e7\u00f5es circulat\u00f3rias, como o infarto, o derrame, a hipertens\u00e3o e a insufici\u00eancia card\u00edaca. Os autores do estudo estimam que, em 2002, as taxas de interna\u00e7\u00e3o hospitalar por condi\u00e7\u00f5es circulat\u00f3rias foram 4,3% menores entre as mulheres do que teriam sido sem os agentes comunit\u00e1rios de sa\u00fade. A economia foi de dezenas de milh\u00f5es de reais. Chama a aten\u00e7\u00e3o o fato de que justamente as mulheres, que costumam receber as orienta\u00e7\u00f5es diretamente dos ACS, tenham sido as maiores beneficiadas.<\/p>\n

N\u00e3o conhe\u00e7o nenhum outro pa\u00eds que tenha estendido os agentes comunit\u00e1rios de sa\u00fade a uma popula\u00e7\u00e3o t\u00e3o ampla e t\u00e3o diversificada assim. Al\u00e9m disso, o SUS<\/abbr> e sua ado\u00e7\u00e3o da estrat\u00e9gia Sa\u00fade da Fam\u00edlia t\u00eam chamado cada vez mais a aten\u00e7\u00e3o de outros pa\u00edses. Isso ficou bem claro pela fala dos palestrantes do 4\u00ba Semin\u00e1rio Internacional de Aten\u00e7\u00e3o Prim\u00e1ria \u00e0 Sa\u00fade<\/a>, realizado em 2008. A Sa\u00fade da Fam\u00edlia tamb\u00e9m foi bem destacada no The World Health Report 2008<\/cite> (Relat\u00f3rio da Sa\u00fade Mundial 2008), que a Organiza\u00e7\u00e3o Mundial da Sa\u00fade dedicou \u00e0 aten\u00e7\u00e3o prim\u00e1ria \u00e0 sa\u00fade. Ao que parece, nenhum outro pa\u00eds do mundo tem um sistema de sa\u00fade gratuito t\u00e3o completo e que atinja tantas pessoas quanto no caso do Brasil.<\/p>\n

Parab\u00e9ns, agentes comunit\u00e1rios de sa\u00fade!<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"

O agente comunit\u00e1rio de sa\u00fade come\u00e7ou prevenindo morte por diarreia, e hoje previne at\u00e9 infarto.<\/p>\n","protected":false},"author":2,"featured_media":0,"comment_status":"open","ping_status":"open","sticky":false,"template":"","format":"standard","meta":{"footnotes":""},"categories":[1],"tags":[18,45,48,56,34,100,19,20,17,16],"_links":{"self":[{"href":"https:\/\/leonardof.med.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/1523"}],"collection":[{"href":"https:\/\/leonardof.med.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts"}],"about":[{"href":"https:\/\/leonardof.med.br\/wp-json\/wp\/v2\/types\/post"}],"author":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/leonardof.med.br\/wp-json\/wp\/v2\/users\/2"}],"replies":[{"embeddable":true,"href":"https:\/\/leonardof.med.br\/wp-json\/wp\/v2\/comments?post=1523"}],"version-history":[{"count":36,"href":"https:\/\/leonardof.med.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/1523\/revisions"}],"predecessor-version":[{"id":4285,"href":"https:\/\/leonardof.med.br\/wp-json\/wp\/v2\/posts\/1523\/revisions\/4285"}],"wp:attachment":[{"href":"https:\/\/leonardof.med.br\/wp-json\/wp\/v2\/media?parent=1523"}],"wp:term":[{"taxonomy":"category","embeddable":true,"href":"https:\/\/leonardof.med.br\/wp-json\/wp\/v2\/categories?post=1523"},{"taxonomy":"post_tag","embeddable":true,"href":"https:\/\/leonardof.med.br\/wp-json\/wp\/v2\/tags?post=1523"}],"curies":[{"name":"wp","href":"https:\/\/api.w.org\/{rel}","templated":true}]}}