Segunda-feira passada o presidente sancionou a lei que obriga as maternidades e hospitais a fazer o teste da orelhinha
(emissões otoacústicas evocadas) em todas as crianças nascidas no serviço. O exame permite a detecção precoce da deficiência auditiva, o que é fundamental para garantir o desenvolvimento normal da linguagem. Estima-se que, para cada 1000 recém-nascidos, entre 1 e 6 tenham algum grau de deficiência auditiva. O problema é muito mais frequente do que as doenças investigadas pelo teste do pezinho
: a fenilcetonúria, por exemplo, só acontece em 0,07 criança em cada 1000. (Leia também: Nem sempre é melhor prevenir do que remediar.
)
Para que a criança aprenda a falar e a entender o que os outros estão falando, é necessário que o exame seja realizado antes dos 3 meses de vida, e que a intervenção seja iniciada antes dos 6 meses. Normalmente, a família e o médico só percebem o problema quando a criança já está com 1 a 4 anos de idade.
As emissões otoacústicas evocadas também são chamadas, na língua inglesa, de eco coclear
, o que diz muito sobre o fundamento do exame. A cóclea é a parte do ouvido interno responsável pela audição. Quando um som chega à cóclea, ela responde emitindo um outro som, normalmente inaudível; esse som é chamado de emissão otoacústica
. Essas emissões otoacústicas são chamadas de evocadas
para diferenciá-las das emissões otoacústicas espontâneas, geradas sem a necessidade de estímulo. A triagem auditiva do recém-nascido usa um aparelho capaz de produzir um som específico e captar as emissões otoacústicas correspondentes, através de um fone de ouvido especial como na imagem acima.
Vitória (ES) já adotou a triagem auditiva de todas as crianças do município. Só que aqui o exame é realizado na APAE, através de convênio com a Secretaria Municipal de Saúde. Por outro lado, a lei exige que os hospitais e maternidades realizem o exame. Com exceção de poucos hospitais universitários, esses serviços não dispõem dos recursos (aparelho e profissional treinado) para realizar o exame. Ainda por cima, a lei já começou a valer do dia para a noite, sem dar um prazo para os serviços se adequarem.
Na prática, nada vai acontecer (ainda) com os hospitais e maternidades que não façam o teste da orelhinha. A lei não estipula um prazo, nem uma punição para os serviços que não o cumpram. Agora será necessário regulamentar a lei, ou seja, será necessário que o Ministério da Saúde publique uma portaria, ou o Congresso crie outra lei, detalhando como a lei será cumprida.
Do jeito como está, a Lei nº 12.303 (essa que já foi aprovada) não contempla as crianças nascidas no caminho para a maternidade, ou em suas próprias casas, ou em casas de parto. Também não obriga a realização dos exames confirmatórios ou das intervenções capazes de garantir o desenvolvimento da linguagem na criança. Espero que essas questões sejam resolvidas, mas não sei se isso será feito pela regulamentação dessa lei, ou pela criação de uma outra.
Na minha humilde opinião, não deveria haver a necessidade de uma lei para a realização do exame. Se formos criar uma lei para cada exame de rotina, as coisas vão ficar muito difíceis. Imagine se cada exame precisar de 13 anos de discussão para começar a ser realizado. (O projeto da lei do teste da orelhinha foi criado em 1997.) Portarias ministeriais e resoluções de agências reguladoras são muito mais ágeis, e a decisão de publicá-las é muito mais técnica e muito menos política do que a tramitação das leis no Congresso.
Resumindo, entendo a lei como um avanço significativo, mas acredito que ainda falte muito para que ela tenha um impacto na saúde da população brasileira.
Reparem que falei o tempo todo em deficiência auditiva
, e não em surdez
. Existe uma diferença. Posso abordar o assunto no futuro, mas por hora sugiro a leitura da página sobre Surdez na Wikipédia.
Amigo MFC, o Pediatra em chamas compartilhou no FB e estou aproveitando para repostar o comentário aqui:
Uma das reflexões é a que o nosso Pediatra em casa postou no Facebook, a do seguimento em uma rede de cuidados a partir de um número significativo de novos diagnósticos.
Há outra: OEA não tem evidências de custo-benefício como exame de screening para todos os recém-natos, e não se sabe quais são os riscos de falsos negativos e consequentes intervenções danosas.
A melhor evidência aponta para seu uso em RNs de risco (história familiar, visita ao CTINeo, prematuridade).
E há um teste ridiculamente simples que, também não baseado em evidências, pode despertar suspeitas e, quem sabe, ser o “screening para o screening”: o das palmas maternas com o RN de frente para o examinador. Mas deve ser bobagem, afinal, uma propedêutica cara sempre vai ser melhor que o exame físico, certo?
Abraço, MFC-Br
Leonardo, confesso que não examinei pessoalmente a questão do custo-benefício da triagem auditiva neonatal universal. O que não deixa de ser irônico, levando em consideração o artigo que sairá quarta-feira.