Convenhamos, se a pessoa não toma o medicamento, fica difícil dele fazer efeito. Mas na vida real é isso mesmo que muitas pessoas fazem: elas não usam a medicação como ela foi prescrita. Eu costumo anotar detalhadamente no prontuário os medicamentos prescritos, mas mesmo assim faço questão de perguntar no retorno como a pessoa está tomando aqueles medicamentos. Não adianta, por exemplo, acrescentar um comprimido de metformina para otimizar o tratamento do diabetes mellitus se a pessoa não está usando nem a dose que já foi prescrita.
O problema da não adesão ao tratamento é um velho conhecido dos médicos, mas o Journal of General Internal Medicine trouxe uma informação realmente nova: 22% das prescrições nem chegam às farmácias.
De acordo com o doutor Michael Fischer, autor principal do estudo e professor assistente da Escola de Medicina de Harvard, os fatores que mais contribuem para a não adesão ao tratamento são o preço dos medicamentos, a comunicação entre médico e paciente, e o trabalho necessário para adquirir o medicamento.
No caso dos pacientes do plano de saúde Kaiser Permanente (dos EUA), por exemplo, apenas 5% dos pacientes deixaram de comprar os medicamentos. Existia um desconto para quem comprasse na farmácia do plano de saúde, mas o mais importante teria sido a facilidade do processo: os pacientes podiam comprar os medicamentos no mesmo lugar em que eram atendidos. (Mais informações: artigo científico, comentário no New York Times, e comentário no KevinMD.com.)
Nesse aspecto (entre outros), as unidades básicas de saúde do SUS se parecem com os ambulatórios do Kaiser Permanente, que alguns consideram o melhor plano de saúde do mundo. Quando eu atendo um paciente, ele consegue obter todos os medicamentos antes de chegar à rua. E o melhor, sem tirar um centavo sequer do bolso. (É claro que não é de graça; o medicamento é pago com o dinheiro dos impostos. Mas quanto mais a pessoa precisa de medicamentos, menos ela pode pagar por eles.)
Outro achado interessante da pesquisa é que as prescrições tinham um risco menor de serem deixadas de lado caso tivessem sido prescritas por um médico de atenção primária à saúde (médico de família, pediatra ou clínico geral). Esses profissionais têm melhores habilidades de comunicação com os pacientes, e o vínculo entre os médicos e os pacientes é um motivo a mais para os pacientes acreditarem (com razão) que os medicamentos são realmente importantes.
Aproveito para chamar o doutor Andre Bressan (do Blog do Pediatra em Casa) para a conversa. No estudo do doutor Fischer, as prescrições feitas para pacientes com menos de 18 anos de idade tinham uma maior probabilidade de chegar à farmácia. Eu tenho cá minha teoria, mas estou interessado em saber: por que você acha que isso acontece?
Leonardo, essa é a segunda vez que escrevo, porque por algum motivo bizarro, a resposta original se perdeu por um click acidental do mause sobre um link ao lado, antes de postar o comentário!!!
De qualquer forma, o Fischer está certo. Uma das primeiras coisas que eu notei como estudante é que os pais “davam o sangue pelos seus filhos”. Em outras palavras, me parecia muito nítido que os pais se esforçavam muito mais para seguir tratamento e voltar a retornos de consultas para seus filhos do que para si mesmos. Também me parecia sempre mais frequente isso entre os economicamente mais frágeis do que entre os economicamente mais potentes (?). É como se, tendo que optar por um ou pelo outro os pais optassem por preservar a existência de suas descendências do que as suas próprias. Talvez por uma questão moral, talvez por instinto ou pressão evolucionista, o fato é que certamente a condução de um tratamento pediátrico conta muito mais com a conivência dos responsáveis pela criança do que pelos responsáveis pelo próprio corpo. Talvez seja apenas que o amor pelos filhos é maior ou mais aplicado que o amor próprio (?).
Agora há pouco eu experimentei (há uns 30 minutos – são 3:01h) uma situação que exemplifica nitidamente o que você descreve no artigo. Recebi uma criança com tosse seca há 4 dias, já tomando remédios corretamente prescritos disponíveis no posto. Entendendo que, além de um melhor controle ambiental, a criança precisava de outros medicamentos que não eram disponibilizados pela prefeitura nos postos, expliquei isso à mãe e prescrevi os nomes dos princípios ativos, explicando sobre os genéricos e como são mais baratos, e como provavelmente o efeito agora seria mais potente. Ela levantou com a receita na mão, depois de me ouvir e me perguntous se era só aquilo. Respondi que sim e ela disse então: Pois bem, ele vai ter que tossir até o dia 15, porque estou sem dinheiro até lá!” E foi embora! Todo um esforço na madrugada jogada no lixo porque ela não tinha ou não queria destinar dinheiro próprio para a compra de remédio para o próprio filho. Não posso dizer que ela não tinha interesse de cuidar dele, pois veio até o hospital – tendo que trabalhar na manhã seguinte – para ver se o moleque parava de tossir. Mas a questão $$ foi mais determinante que empatia ou parentalidade.
Lembro uma vez de um bazar de uma igreja de favela do qual participei. Tudo lá era vendido a R$1,00. Desde microondas até canetas. Perguntei ao pastor daquela comunidade que sentido aquilo fazia. Ele disse que, por sua experiência, quando os objetos e alimentos eram doados, eles estragavam mais rápido, iam parar no lixo mais cedo ou acabavam esquecidos em algum canto (como uma TV que virou mesa de canto). Já quando eram vendidos a qualquer quantia (R$1,00, por exemplo), tinham melhor manutenção, eram usados por mais tempo e ao final, acabavam sendo doados para terceiros. Talvez dar sempre de graça (ok, pago com governo púbico/coletivo) dê uma sensação de direito inalienável a ter TODO o processo de tratamento de graça e uma ofensa pagar por ele (como TODOS nós fazemos).
Uma vez peguei num posto, com uma receita escrita e carimbada por mim mesmo, uma cartela de dipirona numa farmácia pública, na unidade em que eu trabalhava. Eu estava com cefaléia e a dipirona mais próxima era aquela. A enfermeira me falou: dr., vai tirar remédio dos pobres – o senhor pode pagar. Eu respondi: Já paguei com meus impostos! Ela não gostou muito…
Mas de qualquer jeito acho (e tenho esperança) que o que move os pais a terem maior aderência ao tratamento seja porque amam seus filhos o suficiente para isso.
E você o que acha?
Acho mais fácil a mãe dar o remédio no horário para o filho do que para si mesma.
Quanto à aparente gratuidade, concordo que é uma faca de dois gumes, e que muitas vezes as pessoas não valorizam aquilo que, aparentemente, é de graça. O co-pagamento de alguns planos de saúde (apesar de geralmente não ser tão simbólico assim) vem dessa constatação. Por outro lado, quando existe co-pagamento as pessoas pensam duas vezes antes de usar os serviços preventivos, e acabam sendo internadas com mais facilidade.
Os sistemas públicos com algum tipo de co-pagamento costumam não aplicá-lo para as pessoas comprovadamente pobres; seja nos países desenvolvidos ou nos subdesenvolvidos. No Brasil, já atendi a uma paciente que teve um atraso menstrual depois de ficar sem anticoncepcional for falta de 6 reais. Ao contrário da pílula, o teste de gravidez não estava em falta, mas (ironia) tem um custo para o governo semelhante ao de uma cartela de anticoncepcional. Felizmente, foi falso alarme.
Fazer cara feia para a sua dipirona foi ingenuidade da enfermeira (auxiliar de enfermagem?). No Brasil os ricos têm mais acesso aos serviços de alta complexidade que o resto da população, e ainda conseguem medicamentos caros (e às vezes inúteis) por via judicial.
Além disso, muita gente acredita que o uso do SUS pela classe média seria importante para o fortalecimento da demanda social pela melhoria do sistema. Nesse quesito, eu já acredito que uma coisa puxa a outra e vice-versa.
E, por fim, você obviamente tem direito ao medicamento. Não que você pague muito imposto, pois em termos percentuais os pobres pagam tanto quanto, ou até mais impostos que os ricos (dependendo do ano e da metodologia do estudo). Mas você paga imposto, e o SUS não é, ou ao menos não deveria ser, caridade, e sim um direito social.
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