A medicina de família e comunidade também está presente em Portugal, onde a especialidade é chamada de medicina geral e familiar
. E é de Portugal que veio essa descrição da medicina de família, escrita pelo estudante de medicina João Pedro Martins Domingos. Ele passou em estágio com o dr. António Sousa Alvim, na USF Rodrigues Miguéis (Centro de Saúde de Benfica), e escreveu o seguinte relatório:
No âmbito da área da Prática de Saúde na Comunidade, integrada no Módulo III, pude entrar em contacto com, provavelmente, um dos mais importantes meios de promoção de saúde na população em geral, o Centro de Saúde. Pude assim, durante as duas semanas compreendidas entre 18 e 29 de Julho de 2011, ter a oportunidade de acompanhar o Dr. António Sousa Alvim na Unidade se Saúde Familiar Rodrigues Miguéis, uma extensão do Centro de Saúde de Benfica, a qual é (posso agora afirmar) um recurso essencial para os habitantes daquela área de Lisboa.
O médico de família, ou de Clínica Geral e Familiar, encontra na sua área de acção profissional uma vasta extensão de problemáticas, patologias e responsabilidades, quer para com os seus doentes/pacientes, quer para com a população na qual estes se inserem. Foi bastante curioso verificar como vários pacientes ao longo destas semanas chegavam ao consultório e congratulavam o Dr. Sousa Alvim pela sua participação no programa da RTP “Prós e Contras” sobre o medicamento, particularmente uma paciente mais idosa, acompanhada pelo seu marido, que chegou a citar o Dr. Sousa Alvim: “Os médicos hospitalares tratam doenças e estão mais focados nas doenças. Nós, os médicos nos centros de saúde, tratamos pessoas”. Ter ouvido esta frase logo no início do estágio pôs-me alerta para a importância que o médico de família pode significar para uma pessoa e a sua vida, muito para além da sua própria saúde. Ao longo das duas semanas este ponto foi-se tornando cada vez mais evidente.
Um dos casos mais representativos que assisti foi o de uma mãe (S.M. 35 anos) acompanhada pelo filho (T.R. 15 anos). O rapaz apresentava uma tosse irritativa e rinite crónica, provavelmente agravadas pelos seus hábitos tabágicos. Mas ao médico de família estas informações não são suficientes, e ter conhecimento daquilo que o paciente viveu ou está a viver é tão essencial quanto quaisquer sinais, sintomas ou resultados de análises. Foi importante compreender que as circunstâncias de momento da vida deste jovem eram complicadas (abandono escolar, consumo de drogas leves, inactividade física, problemas no relacionamento familiar, etc.) e que estas não eram indiferentes ao bem-estar quer do próprio, quer dos que lhe estavam mais próximos (especialmente a sua mãe).
Era visível o sofrimento expresso na face de S.M. quando o filho relatava os seus problemas de saúde e as outras situações mais “atribuladas” da sua vida e quando ela própria (já sozinha no consultório médico) explicava a dor, stress, depressão e sensação de impotência que sentia a lidar com os problemas do filho. Explicara como tinha vindo a emagrecer e a dormir pouco com toda a pressão exercida, e torna-se óbvio que não são só as doenças que adoecem um ser humano, mas também todas as realidades e componentes que fazem parte da sua vida diária. É em todas elas que o médico de família deve ajudar e agir. E é muitas vezes no consultório do médico de família que os doentes podem encontrar um local de apoio, de confiança e abertura para expor a sua vida, sem medos, e sabendo que o médico fará aquilo que estiver ao seu alcance para promover a saúde e o bem-estar do paciente. O Dr. Sousa Alvim lida (como muito acertadamente afirmou) não com doenças, mas sim com as pessoas e a sua vida.
Por isso ser médico de família não é algo simples… As pessoas não são simples. Ser médico de família é ter sensibilidade para encontrar as fontes de sofrimento de cada paciente, mesmo aquelas que nem eles próprios conseguem identificar e mesmo através dos gestos, atitudes e palavras mais discretos. Ser médico de família é ser comunicativo e aberto, pronto para ouvir aquilo que o doente que tem para dizer e pronto a explicar e informar tudo aquilo que for necessário esclarecer. Ser médico de família é conhecer aqueles que acompanha, ter consciência dos seus medos e vulnerabilidades. É saber dar palavras de ânimo e conforto, e saber colocar o paciente à vontade com palavras tão simples como: “Bom dia! Como é que tem passado?” e “Como vai a família?” (frases que ouvi várias vezes algo longo deste estágio). Ser médico de família é estar alerta e diagnosticar precocemente, promovendo a saúde a longo prazo e minorando os factores de risco que podem vir surgindo, agindo na prevenção da obesidade, diabetes, hipertensão e tantas outros problemas que tendem a surgir cada vez mais nos dias de hoje.
Muito provavelmente se pode afirmar que a Medicina Geral e Familiar é a área da saúde que mais influência e poder tem sobre a modificação de hábitos de vida e prevenção das mais diversas patologias. A importância do Centro de Saúde na comunidade é muito difícil de ignorar, já nunca se poderia descartar o acompanhamento constante e vigilante dos médicos de família que estão presentes desde o planeamento, concepção e nascimento ao crescimento, maturidade e envelhecimento. O médico de família é responsável por todas as fases da vida de uma pessoa e é a “1ª linha de defesa” para travar as patologias diferentes que a todas elas estão associadas. O relacionamento e acompanhamento próximo dá ao clínico geral o privilégio de agir preventivamente, e desde muito cedo, na promoção da saúde, sendo sempre auxiliado por toda uma vasta equipa de profissionais de saúde desde enfermeiros, administrativos e médicos de outras especialidades, todos contando com o médico de família para ser o suporte que os une a todos e que age directa e constantemente com o doente.
Ser médico de família é por isso muito mais do que ter apenas sucesso de diagnóstico e terapêutico, mas também ter humanidade, sensibilidade e um grande sentido de responsabilidade para com aqueles que acompanha e em parte dele dependem.
Como futuro médico, esta experiência de estágio revelou-se de extrema importância, pois permitiu o contacto com novas realidades, e sobretudo a fomentação da noção de que cada paciente é um ser único. É essa vertente particular de cada indivíduo que deve ser considerada no contacto inter-pessoal, nomeadamente na relação médico-doente. A experiência nesta unidade de saúde familiar foi rica, pois permitiu-me uma vivência directa com a prática da medicina, tendo-me ao mesmo tempo sentido bastante apoiado e esclarecido. Para mim tornou-se agora muito claro a acção do centro de saúde como órgão central da comunidade e o papel essencial do médico de família, quer clínico, quer cívico.
Agradeço ao doutor Juan Gérvas, da Espanha, por divulgar esse relatório, e ao autor pelo direito de cópia.
Eu mesmo já escrevi uma descrição da estratégia Saúde da Família no Brasil, e contribuí para o artigo sobre a medicina de família e comunidade da Wikipédia. Compare, e verá como as coisas são parecidas dos dois lados do oceano.
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