Não existem dúvidas de que o uso moderado do álcool, em comparação ao uso excessivo, diminui o risco de infarto agudo do miocárdio e vários outros problemas de saúde. O problema está na comparação entre o uso moderado e a abstinência, ou seja, entre beber pouco e não beber. Há algumas décadas vários estudos têm mostrado que as pessoas que consomem bebidas alcoólicas (não apenas vinho) com moderação têm menor risco de infarto que as pessoas abstinentes, ou seja, que não bebem nem um pouco. Mas… será que deveríamos recomendar a estas pessoas que bebam pelo menos um pouco? Dois estudos publicados dia 22 de fevereiro no British Medical Journal resumem o progresso da ciência no sentido de responder a essa questão.
O primeiro artigo resumiu os estudos que observaram ao longo do tempo o efeito do álcool sobre a saúde do aparelho circulatório. Foram 84 estudos, e acompanharam ao todo mais de 3 milhões de pessoas, ao longo de 2,5 a 35 anos, nos EUA, Canadá, vários países da Europa, Austrália, Nova Zelândia, Japão e China. Essa revisão da literatura científica comprovou que o uso moderado do álcool, em relação ao não uso, está associado a:
- Um risco 25% menor de morte por doenças cardíacas e circulatórias de uma forma geral;
- Um risco 29% menor de desenvolver doença coronariana (infarto, angina; também chamada de doença isquêmica do miocárdio);
- Um risco 25% menor de morte por doença coronariana;
Não houve associação com o risco de desenvolver ou morrer por AVC (derrame), ao contrário do que acontece ao se comparar com o uso excessivo de álcool.
O tipo de bebida alcoólica não se mostrou relevante, ou seja, o consumo moderado de vinho teve o mesmo efeito do consumo moderado de outras bebidas alcoólicas. Repare que essa comparação foi feita levando em consideração que a concentração de álcool varia entre as bebidas alcoólicas; para saber mais, leia meu artigo Você sabe beber com moderação?
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O segundo artigo, realizado pelo mesmo grupo de pesquisadores, resumiu os estudos sobre a relação entre o uso do álcool e os exames de laboratório sabidamente associados ao risco de doença coronariana. Foram 44 estudos, em que os pesquisadores sortearam quais pessoas consumiriam álcool com moderação e quais ficariam abstinentes. Foram 1500 pessoas ao total, e os períodos de acompanhamento foram na casa das semanas.
Em resumo, o uso moderado do álcool aumenta os níveis de de colesterol HDL e de adiponectina, e diminui os níveis de fibrinogênio. Novamente, o efeito é o mesmo para todos os tipos de bebida alcoólica, respeitando as diferenças de concentração de álcool.
Interpretando em conjunto os dois artigos, temos hoje em dia motivos muito fortes para acreditar que o uso moderado do álcool diminua o risco cardiovascular da pessoa, principalmente no que diz respeito ao coração. (Se você é profissional de saúde, leia a discussão do primeiro artigo, em que a causalidade é discutida à luz dos critérios de Hill.) Mas por que, então, nenhuma autoridade recomenda às pessoas que não deixem de consumir um pouco de bebida alcoólica?
Primeiro, ainda não temos certeza de que consumir álcool realmente reduza o risco de doenças cardíacas e circulatórias. Sim, as pessoas que usam álcool com moderação têm menor risco que as que não usam álcool, mas talvez não seja realmente por causa do álcool. Temos motivos para acreditar que as pessoas que não consomem nenhum pouco de álcool sejam, em média, menos saudáveis que as que consomem álcool com moderação. Dessa forma, o risco cardiovascular reduzido poderia ser consequência de menores níveis de saúde prévios, e não do consumo moderado de álcool. Boa parte dos estudos tenta descontar esse efeito, mas é impossível fazer isso completamente num estudo de observação. A única forma de resolver essa dúvida é fazer um estudo de intervenção, como aqueles sobre os exames de laboratório, mas com mais pessoas (dezenas de milhares) e anos (e não semanas) de acompanhamento.
Além disso, nem só de aparelho circulatório vivem as pessoas. O consumo de álcool está associado a dezenas de doenças, e em quase todos os casos se acredita que o uso moderado do álcool aumente, ainda que só um pouco, o risco em comparação a não beber. Dessa forma, mesmo que o risco de infarto seja efetivamente reduzido pelo consumo moderado de álcool, é importante saber como fica a somatória.
Por fim, uma mensagem do tipo “não fique sem beber, use álcool com moderação” aumentaria (ainda mais) a aceitação social do uso do álcool, e isso poderia aumentar a parcela da população que usa álcool em excesso. Não é apenas suposição; as sociedades mais tolerantes com o uso do álcool são aquelas que mais sofrem com seu uso excessivo. No Brasil, por exemplo, o uso excessivo de álcool é o fator de risco modificável que mais causa morte precoce e incapacidade, e é o principal responsável pelos homens viverem menos que as mulheres.
No fim das contas, ainda não existem motivos fortes o suficiente para que as pessoas se obriguem a consumir pelo menos um pouco de bebida alcoólica toda semana. A abstinência ainda é considerada, junto do consumo moderado, uma forma de baixo risco de consumo de álcool.
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