Duas semanas atrás eu dizia que uma das formas de melhorar o acesso à atenção básica é deixar os pacientes saírem das caixinhas em que teimamos em guardá-los. Essas “caixinhas” são chamadas tecnicamente de programas verticais. Em vez de defini-los formalmente, explico reproduzindo o depoimento de um médico a uma dupla de pesquisadores (Gomes & Silva, 2011):
Eu trabalho com cronograma, cada dia tem um programa diferente, segunda feira, pela manhã, eu faço puericultura, à tarde eu faço livre demanda; terça realizo visita domiciliar, à tarde livre demanda; quase todo dia eu tenho livre demanda porque o povo quer realmente é se consultar, eles não querem saber de organização, não. Na quarta-feira atendo as gestantes, à tarde livre demanda; na quinta-feira, pela manhã, como eu tenho 425 hipertensos e 76 diabéticos, eu organizo por agente de saúde o atendimento toda quinta-feira. Na sexta-feira, como a gente só trabalha meio expediente, até as 13 horas, eu atendo livre demanda.
Os programas verticais são uma herança da década de 80, quando ainda não havia o SUS (OMS, 2005). Basta ler o Relatório Mundial de Saúde 2008 (OMS, 2008) para perceber que a persistência dos programas verticais, focados em condições de saúde (como a hipertensão ou a suscetibilidade ao câncer de colo de útero) é uma característica dos países onde as pessoas só tem direito àquilo que faz parte de algum desses programas. Já no caso do Brasil, a Constituicão diz claramente que os cidadãos têm direito ao atendimento integral, ou seja, a todas as suas necessidades.
Na década de 90, os documentos técnicos do Ministério da Saúde sobre o então Programa Saúde da Família (PSF) já enfatizavam a importância de se conhecer a realidade de saúde da população cadastrada, e de se usar essa realidade como ponto de partida para organizar o atendimento, em vez de se implementarem planos elaborados em nível de município, estado ou país (Fundação Nacional de Saúde, 1994; Ministério da Saúde, 1997).
As pessoas procuram atendimento na atenção primárica à saúde (também chamada “atenção básica”) pelos motivos mais variados. Para fazermos uma comparação, num consultório de dermatologia os 6 problemas mais frequentes são responsáveis por metade do movimento, e num consultório de psiquiatria, bastam os 2 problemas mais comuns; já num consultório de médico de família e comunidade, são necessários os 26 problemas mais comuns para alcançar os primeiros 50% (Starfield, 2002: página 108).
No Brasil, um levantamento chegou essencialmente à mesma conclusão, como podemos conferir na tabela 6-1 do livro “Medicina Ambulatorial” (Duncan, Schmidt & Giguliani, 2004:78), distribuído em 2006 pelo Ministério da Saúde para todas as unidades de Saúde da Família do país. Qualquer forma de se organizar o atendimento na atenção primária à saúde, tanto na estratégia Saúde da Família quanto em outros modelos, precisa levar em consideração essa diversidade de necessidades em saúde.
É bem verdade que separar um horário semanal para cada tipo de atendimento simplifica a organização do serviço, especialmente na hora de preencher planilhas. Mas isso também significa que a maioria dos atendimentos só será possível num pequeno horário curinga, tipicamente chamado “saúde do adulto”.
Se for para só fazer pré-natal num horário, por que não substituir o médico de família e comunidade por um ginecologista? O pré-natal precisa ser feito, sim, e se for de baixo risco pode e deve ser feito pelo médico de família e comunidade. Mas, isso não significa que o pré-natal de todas as gestentes precise ser realizado num único horário da semana. Também não significa que no mesmo turno em que se realiza um pré-natal não se possa atender a diferentes demandas de outroas pessoas, como puericultura e gripe. E, principalmente, não significa que não se possa atender às outras demandas das gestantes, como uma dor de cabeça ou uma micose.
(Isso me lembra de um médico de família e comunidade do Reino Unido comentando que os últimos melanomas que ele detectou foram em pessoas que tinham vindo consultar sobre outros assuntos, sem qualquer relação com a pele.)
Quanto mais caixinhas na agenda semanal, menor a eficiência do uso do tempo dos profissionais, e portanto menor o acesso das pessoas ao atendimento (médico, de enfermagem, odontológico etc.). Pior ainda se dentro daquelas caixinhas só houver atendimento para aquele problema, e não para os outros problemas das pessoas em atendimento. O tempo do profissional fica comprometido com atividades preventivas, e quem mais está doente é quem menos consegue atendimento: perde-se tanto em equidade quanto em integralidade.
É por isso mesmo que, ano passado, um manifesto internacional dos médicos de família e comunidade, divulgado e comentado aqui no Doutor Leonardo, já destacava a horizontalidade da atenção primária à saúde como indispensável para combater as doenças crônicas não transmissíveis, que hoje são as responsáveis pela maior parte da carga de doença no Brasil e vários outros países do mundo.
Como agente de saúde, vejo o médico de família como o medico que fazia tudo em uma casa pois este é de inteira confiança da família, só que os médicos concursados hoje em dia não querem atender a outra especialidades que não a sua, isto torna o programa ESF um pouco prejudicado pois a família tem que procurar fora de sua rotina outro profissional que não é de sua confiança.
Daí a importância de se ter um médico especialista em família e comunidade na equipe de Saúde da Família!
concordo com o método horizontal. muito bem colocado o comentário.