Está no forno a nova Política Nacional de Atenção Básica — PNAB, para os íntimos. Depois de ter sido discutida em outras instâncias, a minuta da PNAB passou pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT, que articula secretários municipais e estaduais a Ministério da saúde), que abriu uma consulta pública.
Quando a versão anterior foi lançada, em 2011, esperei a publicação oficial da PNAB para comentá-la em uma revista científica e aqui no Doutor Leonardo. Desta vez, vou colocar o carro na frente dos bois, e comentar logo por aqui. Outra diferença é que, em vez de comentar a PNAB como um todo, detenho-me apenas em alguns pontos que me chamaram a atenção.
Contextualizando, a PNAB não é uma lei, mas sim uma portaria do Ministério da Saúde. No SUS, existem poucas leis importantes, e quase toda a regulação é feita através de normas infralegais, como as portarias ministeriais. Do ponto de vista formal, as portarias são uma forma de uma chefia informar a seus subordinados como proceder para cumprir a legislação; por isso, as portarias começam com uma série de “considerando…”. O papel do Ministério da Saúde na atenção primária à saúde (que o governo brasileiro chama de “atenção básica” por questões históricas) é definir políticas e incentivar (financeiramente) estados e municípios a adotarem essas políticas.
Uma mudança interessante na minuta da PNAB é a incorporação do cuidado centrado na pessoa como diretriz para a atenção primária à saúde no SUS. Em bom português, cuidado centrado na pessoa significa o profissional agir de acordo com o fato de que está cuidando de uma pessoa, e não de uma doença. É mais ou menos isso o que as pessoas consideram como sendo a marca de um bom médico. Inicialmente, não há previsão de incentivo financeiro para os municípios cujos profissionais da atenção primária à saúde pratiquem um cuidado centrado na pessoa. Por outro lado, isso é algo que pode ser medido, e portanto pode ser incorporado em avaliações de desempenho. Estas, sim, estão previstas como critérios para repasses do Ministério da Saúde para as secretarias municipais.
Outra mudança interessante é a criação de uma Relação Nacional de Ações e Serviços Essenciais e Estratégicos da Atenção Básica; parte dos repasses será determinada por quantos desses serviços o município oferece à população. Hoje o município recebe apenas por outros critérios, como o número de habitantes e o número de equipes da estratégia Saúde da Família. Isso é importante para garantir que a atenção primária à saúde seja resolutiva para a grande maioria dos problemas da população. Caso contrário, basta o município cobrar de seus médicos que resolvam meia dúzia de problemas e encaminhei todo o resto aos serviços secundários.
Finalmente, eu gostaria de discutir uma mudança polêmica. A minuta da PNAB mantém a estratégia Saúde da Família como modelo preferencial, e mantém os repasses proporcionais ao número de equipes da Saúde da Família, mas inova ao prever repasses proporcionais o número de “equipes de atenção básica“, que não são da Saúde da Família.
Por um lado, isso é um risco à saúde da população, pois desincentiva os municípios a expandirem a estratégia Saúde da Família em substituição ao resto da atenção primária à saúde. A adoção da estratégia Saúde da Família está associada a maior satisfação, menos mortes infantis, menos mortes por infarto ou derrame, menos internações hospitalares (preveníveis pela atenção primária), maior acesso ao pré-natal e até mesmo menos dengue.
Por outro lado, para o município receber o repasse, essas equipes de atenção básica precisarão ter responsabilidade sobre uma população bem delimitada, de 2 a 3,5 mil pessoas. Sempre achei que esse tipo de responsabilização era o grande diferencial da estratégia Saúde da Família. Pode ser que, enfim, o Ministério da Saúde consiga incentivar que toda a atenção primária do SUS, e não só a estratégia Saúde da Família, trabalhe conforme recomenda a PNAB.
Além disso, o repasse não deixa de ser uma forma de incentivar a expansão da atenção primária à saúde. Os benefícios da estratégia Saúde da Família podem ser creditados em parte ao fato de que muitas de suas equipes simplesmente foram criadas onde antes não havia qualquer forma de atenção primária à saúde.
Vale a pena lembrar que essas são apenas algumas considerações a respeito de uma minuta de portaria. Certamente existem outras questões relevantes, que não foram discutidas aqui. Em parte por isso, não me proponho por hora a me posicionar “a favor” ou “contra” a iminente mudança da PNAB.
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